demasiado lúcido para ser feliz.

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By Luís Fonseca

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Ele acordou estendido na berma de uma estrada, alagado em suor, descalço e vestido apenas com um calção preto esfarrapado. Estava um calor húmido e insuportável. Um caminho rectilíneo debilmente alcatroado adornava inusitadamente a paisagem árida de horizonte baço e indefinido. Dorido e com sangue a pingar-lhe de vários arranhões faciais, levantou-se vagarosamente e sentou-se pensativo. Não se lembrava do que lhe acontecera nem de quem era. Em redor não vislumbrava nenhum estímulo catalisador de uma qualquer recordação. Era apenas ele, a estrada, o Sol e a esterilidade do terreno arenoso envolvente. O silêncio sonorizava na perfeição o buraco negro onde a memória se alojara. Lentamente, pôs-se de pé e, cambaleante, começou a deambular sem destino, arrastando-se penosamente ao longo da vereda, esperançoso da existência de um povoado nas redondezas. Enquanto caminhava procurava avaliar a sua condição física e psíquica. A motricidade e as funções mentais superiores pareciam-lhe preservadas, exceptuando a memória de quem era e da razão por que acordara naquele deserto. Imagens hominídeas vultuosas assaltavam-lhe de forma soluçante o pensamento, provocando-lhe uma angústia profunda e inexplicável. Sentia-as como perturbadoras e incriminatórias. Os vultos negros empunhavam objectos contundentes com os quais agrediam ignobilmente sombras vermelhas sôfregas perante a indiferença de uma assistência repugnante. As incursões cerebrais fantasiosas não contribuíam para clarificar absolutamente nada. Eram apenas o resultado da fragilidade física e da angústia emanante do encarceramento num corpo de personalidade desconhecida. Paulatinamente, a fraqueza superiorizava-se ao instinto de sobrevivência e o alento esmorecia. A salvação parecia cada vez mais longínqua e inexequível de alcançar. A fadiga metastizava-o progressivamente e provocava-lhe alterações transitórias da percepção. Ora ouvia alguém chamar, ora via um carro a aproximar-se. Procurava sanar a sede infernal lambendo as
demasiado lúcido para ser feliz.